Reza a lenda que, num hospital escola, uma médica preceptora estava escrevendo as evoluções e prescrições nos prontuários de seus pacientes, quando ouviu algo que a desagradou sair da boca de um dos internos (estudantes de medicina nos estágios finais de suas faculdades) que estava ao seu lado. Foi então que ela deu uma lição de moral naquele interno, contando para quem estava por perto ouvir a história do leão e do veado, que consiste basicamente na ideia de que um é o predador, e o outro, a presa. Embora o predador aparentemente leve vantagem, sendo chamado por muitos de o rei da selva, ambos precisam acordar cedo e correr, todos os dias, trabalhando duro pelas sobrevivências própria e de familiares. Ou seja, não existe aquela ideia de vida fácil, para quem quer que seja.
Veja o que acontece no futebol. A preocupação e a insônia do técnico de um time que está na zona de rebaixamento são as mesmas do técnico de um dos quatro times do topo da tabela do Brasileirão série A. Cada um deles sabe o duro que deu para chegar aonde chegou. A diferença é que um tem medo de cair para a segunda divisão, o outro tem medo de perder a pole position ou de cair fora da zona de classificação para a Taça Libertadores da América. Pode parecer um dado irrelevante, principalmente para quem não gosta de futebol, mas, para os profissionais do ramo, é trabalho e, é muito mais que isso, é muito dinheiro envolvido na jogada também. Por isso, as vidas daqueles técnicos giram em torno daquele universo. Uma posição inferior na tabela já implica alguns milhões de reais de faturamento anual a menos, para os clubes. O que dirá de uma divisão inferior a menos???
Noutro dia, um outro interno estava escalado para ir evoluir e prescrever pacientes de uma enfermaria daquele mesmo hospital, num final de semana, quando se deparou com aquela médica supracitada fazendo seu trabalho. Então ele se aproximou dela e disse mais ou menos assim, como quem insinuasse que poderia fazer um trabalho mais enxuto, meio que Control C + Control V: "Professora, precisa a gente fazer muita ciência hoje aqui não, né?". Ao que ela respondeu, mais ou menos assim: "Eu já tô fazendo ciência aqui hoje, desde 5h (da manhã)".
Anos depois, aquela médica perdeu a vida de maneira trágica e inesperada demais, tomando de uma surpresa imensuravelmente desagradável seus entes queridos, que talvez já contassem com a possibilidade de ela vir a contrair o Coronavírus e de vir a óbito em decorrência disso, como tem ocorrido com muitos médicos e outros profissionais da saúde, nestes tempos de Pandemia. Ela foi atropelada, por um carro que dobrava a esquina, enquanto atravessava a rua, na faixa de pedestres, quando saía de seu consultório e se dirigia ao estacionamento onde se encontrava guardado seu carro. Ainda não se sabe ao certo porque aconteceu aquilo. Aqui não vem ao caso julgar quem estava ao volante do veículo. O fato é que você pode estar dirigindo seu veículo praticamente pisando em ovos, cumprindo ao pé da letra as leis de trânsito, mas pode ser que o condutor do veículo ao lado, na frente ou atrás, um ciclista e um pedestre que estejam por perto cometam algum descuido. Você precisa estar sempre alerta e preparado para reagir da melhor forma possível, a fim de evitar algo muito desagradável, sabendo o momento certo de buzinar, desviar ou pisar no freio, por exemplo. Por essas e outras, as auto escolas ofertam uma disciplina teórica chamada direção defensiva, para os condutores de veículos automotores em formação. Disciplina essa que, dentre outras coisas, ensina que o condutor não deve perder o foco ou a atenção, enquanto estiver dirigindo, evitando, portanto, manusear o celular ou consumir bebidas alcoólicas, por exemplo.
A morte daquela médica professora deixou em estado de choque praticamente toda a comunidade médica da região, não apenas pela forma como se deu como também pelos bons exemplos deixados por ela de dedicação ao trabalho e aos pacientes e também pelos demais bons ensinamentos deixados àqueles que com ela conviveram, de uma forma ou de outra. Tanto é que, alguns meses ANTES mesmo de sua morte, deram seu nome à uma nova ala inaugurada naquele mesmo hospital onde fez sua história, fazendo ciência, com seu jeito bem peculiar. Como diria um médico local, que foi um daqueles internos que testemunharam histórias engraçadas relacionadas à ela, todo o seu legado é algo que leva o sujeito a repensar a sua profissão, por vezes, olhando para dentro de si mesmo e se perguntando se merecia mesmo ter chegado aonde chegou, sentindo vergonha de ser médico e até mesmo tendo vontade de rasgar o próprio diploma, porque sabe que jamais atingirá o mesmo nível de qualidade e de excelência no ofício. Até que ele conclui que é assim mesmo. Às vezes, estar no topo do mundo, ou ao menos perto dele, numa posição privilegiada e almejada por muitos, implica carregá-lo na cabeça, ao mesmo tempo, pois quem quiser ser o maior de todos deve, antes de tudo, aprender a servir também. E quem não vive para servir também pode não servir para viver. Já dizia a Palavra.
O blog Jardim das Garrafas Digitais dedica esta postagem em memória da Dra. Lúcia Belém, médica cardiologista que foi convocada para a oficina divina, há pouco mais de uma semana, depois de haver trabalhado por muitos anos, nos maiores hospitais de Fortaleza, principalmente no Hospital do Coração de Messejana, onde fez ciência e história, tomando parte nas formações de gerações de estudantes de medicina e de médicos residentes, cujas gratidões são imensuráveis. Solidarizamo-nos com as dores de seus familiares e de seus amigos e expressamos votos para que Deus a acolha em Sua Divina Misericórdia. Amém.
+++++
Nenhum comentário:
Postar um comentário