Seu Francisco das Chagas, vulgo Chico Branco ou simplesmente nosso querido Pai Vô, eternizou-se, enfim, há um mês, depois de haver lutado bravamente pelo dom da vida, num leito de UTI, por um mês, como foi dito. Apesar do tempo, ainda não conseguimos acreditar totalmente no que aconteceu. Ainda não acreditamos que a morte passou por dentro do íntimo de nosso seio familiar e que, de certa forma, nos tocou, logo a nós, que nos considerávamos imortais, até então.
Sabíamos que o dia de nossa despedida chegaria, cedo ou tarde. Não fazíamos ideia de como seria aquele dia, mas procuramos evitar pensar a respeito e procuramos mitigá-lo até onde foi possível. Embora ele já estivesse velhinho e debilitadinho, não esperávamos que aquele dia viesse tão depressa. Fomos, grosso modo, tomados de surpresa. Foi como a chama de uma vela que se apagou, como um rio que secou ou como se um líquido precioso nos tivesse escorrido entre os dedos. E não nos é mais possível reacender a chama, reavivar o rio ou chorar pelo leite derramado.
Queríamos que ele ficasse mais tempo conosco, mas agora temos que nos acostumar com sua ausência e aceitar que, desta vez, ele partiu realmente, porque ele está fazendo falta, mesmo para aqueles que não coabitavam com ele ou que não tinham tanto contato regular com ele. Suas histórias de vida, as histórias hilariantes que ele contava e as histórias hilariantes que ele protagonizou, infelizmente não pudemos registrá-las em áudio ou em vídeo, mas elas ficarão guardadas em nossos corações, para sempre.
Nosso avô materno levou consigo um pedaço de nossas remotas infâncias, cheias de boas lembranças, e um pedaço de nossas raízes familiares. São poucos os adultos na casa dos trinta que ainda podem se dar o luxo de dizer que têm os avós vivos e que têm um referencial ascendente genealógico de duas gerações ou mais. São poucos os idosos que ainda têm os pais vivos. Ainda são poucas as crianças e adolescentes que chegam a conhecer seus bisavós, embora a longevidade do brasileiro tenha aumentado um pouco, nas últimas décadas. Nossa avó materna, sua viúva, dizia que deixamos de ser crianças quando nossos pais nos deixam.
Quando o encontramos no necrotério do hospital, custou-nos acreditar que realmente fosse ele. Quem o conheceu em vida recusar-se-ia a acreditar que fosse ele. Até os últimos instantes que antecederam a despedida final, ficamos observando e digerindo aquela cena, tentando acreditar que era real o que estava acontecendo e que era ele mesmo. De certa forma, já não era mais ele mesmo, pelo menos em parte, porque, depois que morremos, começamos a deixar de ser nós mesmos.
Nem todos tiveram coragem de ir à despedida final, porque era uma tarefa árdua e dolorosa, mas alguém precisava fazê-la. Não é fácil assimilar a noção de que, apesar de seu ente querido estar diante de você como se estivesse dormindo, ele nunca mais abrirá os olhos, nunca mais abrirá a boca para falar ou respirar, nunca mais mexerá as mãos ou os pés e seu coração nunca mais baterá. Então, você se vê obrigado a trancá-lo numa caixa apertada e levá-la para ser enterrada e deixada em um lugar distante ou, às vezes, incinerada e as cinzas recolhidas para serem enterradas ou aspergidas nalgum lugar estratégico. Seja qual for a destinação da caixa, após a despedida final, só nos resta dar meia volta, ir embora e seguir com nossas vidas.
Quando você opta por sepultar seu ente querido, você tem dois caminhos a seguir: ou você se prende à noção incômoda de que o corpo dele fica lá em decomposição progressiva, no subsolo da necrópole, prolongando a dor de seu luto, ou você mantém o foco na ideia de que ele já não está mais lá, porque, assim como a borboleta sai do casulo para voar e alguns répteis trocam de pele e deixam as carcaças para trás, ele também se liberta do peso de sua armadura e voa.
Uma vantagem da cremação, prática funerária comum em partes do Oriente, especialmente naquelas onde se pratica o hinduísmo, é apaziguar a sua consciência e acabar com seu sofrimento de pensar em seu ente enterrado e apodrecendo nalgum lugar, além de facilitar a liberação da alma, como os hindus acreditam, mas não é uma prática tão ecológica assim, como alguns pregam, porque os fornos crematórios também devem emitir gases aquecidos na atmosfera. Em contrapartida, uma vantagem do sepultamento é a fixação de um ponto de referência geográfico onde a pessoa continue presente parcial e fisicamente e onde se possa construir um monumento em sua homenagem.
Gostaríamos de ter-lhe perguntado, antes de partir, por exemplo, o que ele pensava do Brasil, se melhorou ou se piorou, ao longo dos oitenta e cinco anos em que viveu neste país. Talvez ele tenha visto o Brasil se transformar num lugar cada vez mais inóspito, ameaçador e impróprio para criar descendência, porque os brasileiros, ao longo do século XX e do começo do século XXI, acentuaram o egoísmo, a corrupção e a malandragem e diminuíram o respeito uns pelos outros. Talvez ele tenha tido alguma esperança de ver o Brasil melhorar, há uns doze anos, quando uma facção política de esquerda aparentemente com tendências populares assumiu o governo, prometendo entregar o poder nas mãos do povo e tornar o país um lugar mais justo. Não foi bem assim, como sabemos. Depois conversamos mais sobre isso.
Quando ele partiu, as notícias divulgadas pelos meios de comunicação, notícias desalentadoras, por sinal, apesar da proximidade do Natal, davam uma clara ideia dos rumos que o Brasil e o mundo estavam tomando, e ainda estão. Você deve ter visto, por exemplo, as recentes notícias de atentados orquestrados por organizações terroristas pseudomuçulmanas na França.
Parece que Deus resolveu chamar nosso avô para sua oficina num momento oportuno, após ter cumprido o seu metiê no mundo, deixando filhos, netos e bisnetos criados, para não ter de conviver mais com tanta barbárie e com tanto descaso com o povo brasileiro. Como foi dito, o Pai Vô e as outras pessoas de sua geração que já se eternizaram também devem estar bem melhores do que nós. Na verdade, não são eles quem precisam de orações. Somos nós mesmos.
Na noite em que ele partiu, quando cheguei ao meu domicílio, liguei um rádio, para tentar relaxar e dormir um pouco. Coincidência ou não, a primeira música que tocou foi "Fita Amarela", cantada por Ivan Lins, da autoria de Noel Rosa, sambista carioca e boêmio dos idos de 1930, que faleceu muito jovem, acometido por tuberculose. O refrão dizia: "Quando eu morrer, não quero choro nem vela. Quero uma fita amarela gravada com o nome dela". Nosso avozinho não ganhou uma fita amarela com o nome de quem foi sua companheira por mais de sessenta e cinco anos, mas carregou sobre seu ataúde uma bandeira do Vozão de Porangabussu, o Ceará Sporting Clube, seu time do coração. De onde estiver, esperamos que veja o Alvinegro na série A do Brasileirão em 2016.
Obviamente, a letra da canção supracitada não tem relação com a vida do nosso avô, mas, pelo que você leu aqui, tanto a morte dele como a música nos levam a refletir sobre nossas vidas e mortes, coisas que fizemos ou que deveríamos ter feito. Como foi dito, quando a morte se expressa diante de nossos olhos de alguma forma, por um momento ela nos toca, levando-nos a parar, lembrar-se dela, temê-la, respeitá-la e aceitá-la. Não conseguimos imaginar como ela nos golpearia diretamente, mas podemos crer que qualquer um poderia estar dentro daquele féretro no lugar do finado.
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Wow Lindo post ! Continue sendo esse homem talentoso e compassivo viu?!!
ResponderExcluirLindo!! Obrigada por lembrar do grande Paivo!! abracos
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