Espero que você tenha compreendido a ligação entre “O Médico e o Monstro” e os estudos de casos publicados por Freud e que deram origem à psicanálise, conforme eu expliquei naquela postagem. Ambos são trabalhos contemporâneos e versam sobre o dualismo conflitante da personalidade. Mas você deve estar se perguntando o que tudo isso tem a ver comigo, não é verdade?
Eu também sou humano, também tenho meus demônios. Antes de chegar onde estou, tive uma longa história de vida, acumulei muitos bens, coisas boas e coisas más. Cedo ou tarde, teria de começar a fazer uma faxina no meu almoxarifado. De certa forma, escrever neste blog está contribuindo neste processo. Eu não me considero uma pessoa inteiramente boa, nem inteiramente má, mas também não sou o tipo do qual você precisa ter medo e passar para o outro lado da rua, quando me vir. Escrevo assim movido pela velha e atormentadora necessidade de refletir sobre minha prática médica, que, por vezes, não me deixa dormir.
Às vezes eu me pergunto o que as pessoas lá fora, especialmente os pacientes que eu atendo, pensam ao meu respeito. Como será que eles me veem??? Será que eles veem apenas o doutor Jekyll ou conseguem também enxergar meu lado senhor Hyde??? Eu trato bem todo mundo que me procura. Eu me considero humilde. Para mim, não existem subalternos nem superiores. Ser grosseiro com alguém não é da minha natureza. Entretanto, por vezes, há pacientes ou parentes de pacientes e outros seres do meu ambiente de trabalho que me deixam encolerizado. E eu guardando tudo, já que tenho o velho defeito de colecionar rancor, mas nem por isso eu viro monstro nessas horas e saio descontando as frustrações da minha vida em algo ou em alguém. Este seria o princípio de muitos dos surtos sofridos por pacientes psicóticos, pessoas que, em comparação com a maioria dosseres humanos ditos normais, têm um limite bem inferior de tolerância àsadversidades da vida.
Eu procuro ajudar as pessoas que me procuram dentro de minhas possibilidades, tentando não deixá-las sair de minha presença com as mãos vazias. Quando não posso fazê-lo, encaminho-as a quem possa ajudá-las. Trabalho sempre aparentando certa dose de bom humor. Às vezes me pergunto se não estou sendo hipócrita, me pergunto se aquele doutor que vejo no consultório ou na enfermaria não seria apenas mais um personagem, diferente daquele que vejo nas ruas ou daquele outro que está em casa. O que me consola é saber que talvez eu não seja a única pessoa a se fazer essas perguntas e me consola também sentir que, dentre todas as pessoas que atendi na minha carreira, há pelo menos uns noventa por cento de satisfação em relação aos meus serviços prestados como médico, modéstia à parte. Por isso mais uma vez eu digo que não me arrependendo de ter trabalhado por onde andei, nem de ter atendido os pacientes que atendi, por mais que tenham me desgastado. Estou feliz em sentir que o meu trabalho tem um grande impacto social. Falarei mais sobre isto em outra oportunidade.
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