“Se você contribui para a felicidade de outras pessoas, encontrará o verdadeiro bem, o verdadeiro sentido da vida”.
Dalai Lama
Quando eu
comecei minha carreira, trabalhando em um posto de saúde no interior, há pouco
mais de um ano, eu trabalhava de segunda à quinta-feira, no horário comercial,
e recebia uma quantia satisfatória para manter as contas em dia, mas que era
extraordinária para um médico recém-formado. Se eu quisesse, poderia me dar o
luxo de viver tranquilamente apenas daquele emprego. Não sei se seria
suficiente, se eu fosse casado e tivesse filhos.
Confesso que
fiquei muito balançado, quando, subitamente fui convocado para assumir uma vaga
remanescente de médico residente em Fortaleza. Foi uma decisão muito difícil,
não apenas por causa do salário, mas também porque eu vivia com qualidade de
vida no interior e estava mais perto do meu amor. Vislumbrando os tempos de vacas
magras que viriam adiante, com muito suor e labuta para conseguir pagar as
contas, inclusive as prestações de um carro recém-adquirido, um de meus
instrumentos de trabalho mais caros, perdendo apenas para minha mente, pesei os
prós e os contras e acabei optando mesmo por largar tudo, retornar à capital e
assumir a residência médica.
Então eu me
lembrei daquela velha piadinha do cachorro que entrou na igreja. Todo mundo
sabe que ele só entrou porque a porta estava aberta. Tudo bem que talvez eu não
tivesse feito o suficiente para merecer, mas, como a porta estava se abrindo
para mim, eu precisava aproveitar, até porque, se eu tivesse adiado meu
ingresso na residência, a tendência seria tornar-se cada vez mais difícil minha
entrada, ano após ano. E eu já tenho essa impressão de que, a cada ano, tudo
fica mais difícil para mim. Tomei a melhor decisão possível. Estou plantando agora para colher
depois.
Por vezes, eu
tinha uma sensação de culpa. Eu via que outras pessoas que trabalhavam na área
de saúde daquele município, mesmo tendo nível superior, não recebiam a metade
do que eu recebia, e trabalhavam mais que eu. Por vezes, eu tinha uma sensação
de culpa associada a uma sensação de desperdício. Como eu falei no começo, eu
me sentia bem remunerado e satisfeito com meu salário de médico do PSF, apesar
de alguns inconvenientes desse trabalho, sobre os quais quero comentar em outra
oportunidade. O fato é que me acomodei com aquela situação. Eu não sentia a
necessidade de fazer horas extras dando plantões, mas, vez por outra, eu me
lembrava de que havia hospitais na região precisando de alguém como eu.
Detesto
admitir
isto, mas acho que não me interessei em dar plantões porque não me
sentia
seguro e competente o suficiente para assumir tal responsabilidade de
ficar na
linha de frente de um hospital qualquer do interior, como um médico
multifuncional, sendo, ao mesmo tempo, clínico, cirurgião, pediatra e
obstetra.
Mesmo no posto de saúde, eu sempre tive medo de que trouxessem alguém
para
morrer aos meus pés e eu nada pudesse fazer para impedir. Quem trabalha
em um ambiente daqueles está exposto a ser um saco de pancadas, algo que
sirva para alguém descarregar suas fraquezas. Se ele sabe que o caso é
grave e que talvez não tenha mais solução, joga-o aos pés do doutor,
mesmo sabendo que este também não vai poder fazer coisa alguma, mas pelo
menos tira o peso das costas. Não obstante, me pergunto se não fui
egoísta por ter deixado de investir parte de meu
tempo livre em intensificar a prática do bem, aliviando os sofrimentos
dos
pacientes que procuraram aqueles hospitais e o fardo nas costas de meus
companheiros de labuta.
Bem, de um jeito
ou de outro, o fato é que consegui fazer meu metiê, lá no sertão. Como eu já
disse, eu não me arrependo de ter trabalhado nos lugares por onde passei
e semeei o bem. Quando comecei a trabalhar como médico, num recanto
perdido no meio do sertão, confesso que senti medo. Havia uma multidão de
pacientes a minha espera, como se fossem feras prestes a me devorar. Teria eu
todas as respostas para as suas dúvidas? Eu me senti, então, como se retornando
aos primórdios da medicina. Como, naquele distrito, eu estava assumindo
teoricamente a posição de maior autoridade sanitária do lugar, então eu passava
a ser uma espécie de pajé de uma tribo. Se você não sabe, nas civilizações
antigas, quem exercia a função equivalente à do médico era o sacerdote. Então,
eu que ultimamente tenho rezado pouco, mas sempre me lembrando de que Deus
existe, naquele dia eu rezei, assim como aqueles antigos sacerdotes rezavam
para suas divindades e evocavam espíritos para que viessem e trouxessem a cura
para aqueles que os procuravam. Eram outros tempos. A medicina tornou-se mais
técnica e menos mística. De qualquer maneira, deu certo. Criei alguma
autoconfiança e, até agora, tenho conseguido satisfazer a maioria daqueles que
me procuram.
Escrevi tudo isso até agora só para
dizer que penso que o fruto mais importante do ofício médico é seu impacto social, seguido por uma remuneração excepcional, se
comparada com as remunerações de muitos outros assalariados, mas isto requer
muito estudo e atualização permanente.
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