A mensagem a seguir transcrita é de um e-mail enviado pelo mesmo remetente da mensagem publicada na postagem "Rotina de Ofício". Trata-se outra vez de uma mensagem enviada de um médico para outro, na forma de um desabafo, aparentemente. Publicamo-la hoje, feriado estadual de São José, padroeiro do Ceará, para que você tenha mais tempo para lê-la, se interessar.
Prezado companheiro,
Escrevo essencialmente para informar-lhe que executei minha pretensão de deixar um daqueles municípios onde trabalhava, conforme escrito naquela carta. A seguir, listo os motivos que embasaram minha decisão, em ordem decrescente de relevância.
- Instabilidade política: O município em questão mudou de prefeito algumas vezes, nos últimos anos. Consequentemente, mudou também o comando da Secretária Municipal de Saúde algumas vezes. Com isso, muitos trabalhadores da saúde também foram remanejados ou exonerados diversas vezes, no mesmo período. Em suma, assim como em muitos outros rincões do Brasil, os profissionais da saúde são, em sua maioria, tratados como seres descartáveis.
- Instabilidade empregatícia e impossibilidade de crescimento profissional: A instabilidade política do município leva também às instabilidades financeiras do mesmo e de quem dele depende para viver. Com as mudanças nos cargos principais do governo municipal, atrasam-se as liberações de recursos para, entre outras coisas, bancar a folha de pagamento. Além disso, com essas mudanças, as permanências dos servidores públicos que não têm vínculos empregatícios estáveis como os concursados, por exemplo, estão sempre ameaçadas. Esses servidores contratados e recontratados temporariamente sempre são vistos como descartáveis e são os primeiros a serem eliminados, para dar lugares aos indivíduos apadrinhados dos gestores públicos. Se os temporários conseguem se manter nos empregos, enquanto recebem seus salários, ainda que atrasados ou reduzidos, devem considerar que estão lucrando. Não devem esperar mais que isso. Não devem esperar, por exemplo, aumentos salariais ou promoções.
- Atenção Básica desestruturada: A maioria da equipes do Programa de Saúde da Família do lugar está incompleta. Faltam médicos e medicamentos em muitos postos de saúde, o que leva muitos usuários do CAPS a transferirem suas demandas da Atenção Primária para a Atenção Secundária. Essa é uma desvantagem de o CAPS ser um rei em terra de cego, por ser a unidade de saúde mais operante daquele município.
- Hospital desassistido: Sistemática e frequentemente, o único hospital do lugar fica sem médico de plantão, em alguns turnos, todas as semanas. O hospital não dispõe de direção clínica. Como o hospital se localiza geograficamente bem próximo ao CAPS, por vezes querem transferir a responsabilidade para este. Por vezes, encaminham pacientes do hospital em busca de receitas no CAPS. Por vezes, querem que os profissionais do CAPS atendam aos pacientes do hospital. Essa situação nos deixa vulneráveis, não apenas como profissionais, mas, antes de tudo, como cidadãos e potenciais usuários do hospital.
- Possível descontentamento da comunidade com nosso trabalho: Lamentavelmente, as pessoas em geral não sabem enxergar e valorizar o bem que outras pessoas são capazes de fazer por elas. As pessoas só enxergam e valorizam o mal que outras pessoas são capazes de fazer. As pessoas só têm olhos para as mancadas das pessoas e são capazes de fazer grandes estardalhaços por conta delas. À medida que aumenta a população de usuários do CAPS, aumenta a complexidade dos casos atendidos e aumentam as cobranças por parte dos usuários e da equipe. Não me recordo de problemas diretamente com alguém da clientela ou da equipe de trabalho. Atendia em dois dias por semana, durante os quais consultava os pacientes, me reunia com a equipe e, eventualmente, visitava algum paciente que não tivesse condições de comparecer ao serviço e que realmente precisasse de nossa assistência. No entanto, senti que havia uma certa insatisfação com relação a isso. Por vezes, recebia cobranças para ir além do consultório, apesar do tempo minguado. Você também já deve ter percebido que, nos estabelecimentos de saúde em geral(postos de saúde, clínicas, consultórios, hospitais, etc.), públicos ou privados, as populações de usuários apresentam perfis bem peculiares, que as distinguem e passam a impressão de que os usuários moram no mesmo bairro, na mesma rua, no mesmo condomínio ou são até mesmo parentes entre eles. Como foi dito, existem pessoas que costumam chegar aos serviços de saúde acompanhadas por seus parentes, como se fossem donas do lugar, dos médicos e de outros funcionários, cheias dos direitos, ostentando seus problemas como se fossem as penas de um pavão, como se fossem as únicas pessoas do mundo nessa situação ou como se fossem prioridade em relação às outras pessoas que enfrentam os mesmos problemas. Pessoas com problemas muito complicados, daquelas que você não sabe mais o que fazer com elas, existem em todos os lugares, assim como pessoas espaçosas e encrenqueiras. Se tivéssemos de desistir de um emprego por conta delas, teríamos de desistir de exercer a medicina em geral. No entanto, a desistência se justificaria, se aqueles casos se acumulassem a tal ponto que criassem situações embaraçosas, comprometendo a segurança no ambiente de trabalho e a comunicação com a clientela da comunidade.
Enfim, sabemos que não existem empregos perfeitos, em lugares perfeitos, com equipes perfeitas, pacientes perfeitos e familiares perfeitos, mas, gradativamente, vamos conhecendo o mundo, tateando sobre ele, nos adaptando e nos encontrando.
De qualquer maneira, quando percebemos que um ambiente já está saturado e que nós também estamos, porque já trabalhamos nele o que podíamos trabalhar, já retiramos dele tudo o que podíamos retirar e já oferecemos a ele tudo que tínhamos a oferecer, está na hora de cogitar uma nova mudança de ares e de trilhar um novo jeito de caminhar. Espero deixar o lugar em boas mãos e espero estar evoluindo um degrau na vida profissional.
Atenciosamente,
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Muito massa!
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