"Quando vocês veem uma nuvem se levantando no ocidente, logo dizem: 'Vai chover', e assim acontece. E quando sopra o vento sul, vocês dizem: 'Vai fazer calor', e assim ocorre. Hipócritas! Vocês sabem interpretar o aspecto da terra e do céu. Como não sabem interpretar o tempo presente? Por que vocês não julgam por si mesmos o que é justo? Quando algum de vocês estiver indo com seu adversário para o magistrado, faça tudo para se reconciliar com ele no caminho; para que ele não o arraste ao juiz, o juiz o entregue ao oficial de justiça, e o oficial de justiça o jogue na prisão. Eu digo que você não sairá de lá enquanto não pagar o último centavo".
Como você viu, a atriz brasileira Fernanda Torres ganhou um prêmio Globo de Ouro de melhor atriz em filme de drama estrangeiro (língua não-inglesa), por sua atuação no longa metragem Ainda estou aqui, filme inspirado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, em que o autor escreve sobre o desaparecimento de seu pai e as repercussões daquele desaparecimento, na vida familiar. O escritor é filho do ex-deputado federal e engenheiro civil Rubens Paiva (interpretado por Selton Melo), que teve o mandato cassado, quando os militares ascenderam ao poder, em 1964, vindo a se exilar na Europa, durante alguns anos, retornar ao Brasil e se estabelecer com seus familiares, perto da orla marítima da cidade do Rio de Janeiro, até ser preso por agentes do governo, em sua casa, em 1971, e nunca mais ser encontrado. Passaram-se mais de duas décadas, até que surgissem pistas sobre o que pode ter acontecido e ele pudesse ser oficialmente declarado morto. A protagonista do filme é Eunice, viúva de Rubens Paiva, interpretada por Fernanda Torres. Um dado curioso: a sra. Eunice Paiva, na vida real, se graduou em direito, após o sumiço do esposo, vindo a se tornar uma advogada de referência na defesa dos direitos humanos. Longe de questões ideológicas e político-partidárias, essa premiação tem um lado positivo, pois mostra que o cinema brasileiro ainda tem algumas força e qualidade dramática e técnica.
Agora, aqui cabe uma reflexão, dos pontos de vista histórico e ideológico. Pouco mais de 2 anos antes da prisão de Rubens Paiva, mais precisamente em dezembro de 1968, o governo baixou o Ato Institucional nº5, o AI-5, que, entre outras coisas, determinou o fechamento do Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado). Passadas mais de cinco décadas, o que temos? Temos um país governado por um grupo político que fazia oposição ferrenha ao grupo que governava o país, em 1968, e que se apresenta como ardoroso defensor da democracia, da liberdade de expressão, da diversidade em todas as formas e de outros interesses populares. Sendo assim, deveríamos estar numa situação bem melhor e completamente oposta àquela de cinco ou seis décadas atrás. Será que estamos mesmo tão bem assim? Senão vejamos o que nos diz uma página oficial do governo atual sobre o AI-5:
Os Atos Institucionais foram decretos emitidos para legitimar as ações políticas dos militares durante a ditadura e conferir poderes extraordinários ao presidente. Através do AI-5, o presidente criava poderes para si como:
- Fechamento do Congresso;
- Cassação de mandatos;
- Intervenção nos estados;
- Decretação do estado de sítio sem os trâmites legais da Constituição;
- Suspensão de direitos políticos dos cidadãos;
- Prisões sem justificativa;
- Suspensão do direito do habeas corpus;
- Suspensão da atuação do judiciário nos atos enquadrados no AI-5.
Será que as linhas supracitadas ficaram mesmo no passado? Elas se encontram mesmo tão distantes assim da realidade atual, deste começo de século XXI? Você também se inclui entre aqueles que acreditam que existe mesmo "respeito e harmonia entre os poderes (executivo, legislativo e judiciário)"? Se você se atentar mais detidamente às notícias veiculadas pelos principais meios de comunicação, perceberá que, praticamente, todos os dias, são exaradas decisões monocráticas por membros de nossa suprema corte. São decisões baseadas naquilo que eles consideram constitucional ou inconstitucional, segundo suas visões pessoais das leis. Perceberá também que, na verdade, essa suprema corte criou vida e luz próprios, depois de adquirir muita autonomia, ao longo dos anos, ao ponto de chegar ao topete de legislar por conta própria e em causa própria e de decidir sobre a validade ou a nulidade de leis que são votadas e promulgadas, nas casas legislativas, e sancionadas pelo chefe de Estado e do executivo. Tivemos o recente exemplo do impasse na liberação de emendas parlamentares. Foi votada, promulgada e sancionada uma lei versando sobre o tema, após seguir os devidos trâmites burocráticos, para que viesse um ministro da mais alta corte judiciária do pais e, por meio de uma canetada, impugnasse a lei, por não estar ao seu gosto pessoal, tudo isso contando com a conivência do presidente da República, cuja governabilidade é questionável (conversaremos mais sobre isso).
Por essas e outras, não se surpreenda se, num belo dia, a polícia do governo entrar nas principais casas legislativas do país (Câmara dos Deputados e Senado Federal), convidar os parlamentares (deputados federais e senadores) a se retirarem levando seus objetos pessoais (que talvez venham a ser apreendidos), lacrar os gabinetes, os plenários e as demais dependências dos parlamentos e quiçá prendendo alguns dos parlamentares, sob alguma acusação fajuta como, por exemplo, "abolição violenta do Estado democrático de direito" ou "propagação de fake news", ou mesmo simplesmente sem acusação formal alguma. Basta que a nossa suprema sorte dê uma marretada na mesa, haja vista ela deter o controle da principal força de segurança do país, tendo assim tem o poder de coagir nas mãos qualquer um que se oponha aos seus interesses, enquanto as Forças Armadas estão esvaziadas, desmoralizadas, desautorizadas, desarticuladas, desmobilizadas, descapitalizadas e desacreditadas. Do mesmo modo, esvaziado, desmoralizado, desautorizado, desarticulado, desmobilizado, descapitalizado e desacreditado, está o nosso congresso nacional, que deveria ser o principal defensor da democracia e da ordem. Em suma, fica patente que, pelo andar da carruagem, a qualquer momento, o Congresso nacional pode ser dissolvido de novo. Nada mais falta acontecer. Se duvidar, essa corte, que tem gozado cada vez mais de tantos poderes (e gozado das caras dos cidadãos também), pode até mesmo destituir o presidente da República, se julgar conveniente e "constitucional" fazê-lo, como já o fez com um governador, pelo menos, há alguns anos.
Sem sombras de dúvidas, não deixa de ser lamentável o que aconteceu ao sr. Rubens Paiva e aos seus familiares, bem como a outras tantas pessoas e famílias, Brasil afora, independentemente de terem sido pessoas boas ou más. Sabemos que foram cometidos muitos excessos e injustiças, durante um regime chamado de exceção, algo que nenhuma pessoa com o mínimo de bom senso deseja de volta. Não se trata de defender retrocesso para governos ditatoriais e repressores, com supressão de direitos políticos, violência e tortura, mas será que estamos mesmo numa situação tão melhor assim do que estávamos, há mais de 50 anos? Será que não estamos trocando seis por meia dúzia de novo, e ainda não percebemos isso tão nitidamente? Independentemente de muitos brasileiros que se dizem de direita conservadora desejarem ou não a volta da Ditadura, ela parece estar voltando, insidiosamente, e justamente pelas mãos de quem mais se declarava fazer oposição contra ela e que jurava defender ardorosamente a democracia conquistada, nas últimas quatro décadas. Por incrível que pareça. Sendo assim, se você puder se esforçar e raciocinar um pouco mais, deduzirá quem está traindo a pátria de verdade.
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