Páginas

domingo, 30 de dezembro de 2018

Rotina de Ofício 3



        Esta carta é um desabafo de um médico que, apesar de pouco tempo de experiência, já indica expressivo e preocupante desgaste emocional com seu trabalho, porque tempo, experiência e desgaste não estão necessária, direta e proporcionalmente ligados. Ou estão? Seja como for, é cada vez mais comum nos depararmos com casos de suicídios ou de tentativas de suicídio envolvendo médicos. Então, por favor, mesmo que você não seja médico(a), leia e tire suas conclusões:

        Não conto dez anos de formado, mas, apesar de tantas dificuldades, agradeço a Deus pela conquista, porque foi um passo que me fez muita diferença e me abriu portas. Antes de cair na medicina, passei algum tempo marcando passo* noutras searas. Não quero imaginar como seria minha vida hoje, se eu tivesse continuado naquelas áreas. Certamente não teria conseguido o que consegui e não teria o mesmo padrão de vida. Mesmo assim, me sinto um tanto frustrado com a medicina, porque ela não me trouxe a qualidade de vida e a satisfação esperados. Não tenho mais o mesmo entusiasmo da época da formatura, com o então novo status e com a cabeça e o coração cheios de expectativas e de boas ideias e intenções. Para mim, relembrar aquele momento já não faz mais tanto sentido, pois, tendo perdido a cor e o sabor originais, já não desperta mais as mesmas emoções. 
*Expressão do jargão militar que significa marchar sem sair do lugar. 

        Dias atrás, num raro momento de descontração com a família, estava numa loja comprando roupas, quando avistei à distância alguém que me pareceu um velho professor da faculdade. Torci com meus botões para que ele não viesse falar comigo. Se me viu, não deve ter me reconhecido. Nem tenho certeza se era realmente ele. Me senti envergonhado porque sei que não fui um aluno muito bom. Tive muitos altos e baixos, ao longo da formação. Nem sei como cheguei aqui. Em situações assim, é como se visse um outdoor com os dizeres: "O que você tem feito com os seus conhecimentos adquiridos?". E me sinto como o empregado que enterrou as moedas que o patrão lhe deu e não as investiu, segundo a parábola dos talentos.  

         Me considero um profissional medíocre. Deixei para trás muito do que considerei um fardo dispensável, ao longo da caminhada. Hoje, estou atuando apenas em minha especialidade e meus conhecimentos são quase que limitados a ela, a qual já visava antes mesmo de entrar na faculdade, porque me identificava com ela, mais como paciente que como médico, devido aos meus problemas pessoais. Estou na minha zona de conforto, pensando dentro da caixinha em trabalhar cada vez mais, não para ficar rico, mas para ter mais dinheiro para pagar minha dívidas, e cada vez mais cético em relação aos meus potenciais e aos meus poderes de curar, aliviar ou confortar, enfim, menos crente de que ainda consiga mudar o mundo, ou pelo menos o meu mundo, fazendo o que faço. 

         Tenho vivido mais para trabalhar do que trabalhado para viver, ao ponto de mal poder cuidar de mim mesmo. Por mais borocochô que esteja, como se diz na minha região, sigo mais preocupado com as saúdes dos outros do que com a minha própria. Preenchendo meus horários livres com bicos, passo cada vez menos tempo em casa e mal tenho tempo para me submeter à consultas e exames com outros colegas e para praticar atividades físicas regulares. Estas, sempre começo, persisto por alguns dias, e paro. Até recomeçar. E assim por diante. Sou como um carro que requer manutenção, mas não quer parar numa oficina, esperando que venham consertá-lo em movimento. 
         Reconheço que necessito de inovação constante. A correria do cotidiano me impede de buscar essa inovação com a regularidade que gostaria. A máquina precisa que algumas peças sejam trocadas periodicamente, mas a máquina não pode parar para o serviço ser feito. Necessito fazer um mestrado, talvez até um doutorado, para crescer intelectual e profissionalmente e agregar valor ao meu trabalho, mas como é possível, se preciso trabalhar muito para tentar manter as contas em dia e mal sobra tempo para curtir a família e fazer exercícios físicos regulares??? 

         São raros momentos como este em que posso me sentar para refletir sobre o que tenho feito e o que tenho sentido e colocar tudo num papel. Não estou reclamando do que tenho e de onde estou, porque sei que estou em posição privilegiada e desejada por muitos, embora às vezes tenha a impressão de estar ocupando o lugar de outra pessoa. Continuo grato a Deus por me manter de pé diante de tempestades e por ter me dado um meio de vida honesto, digno e potencialmente frutífero e florido, embora continue buscando algo melhor. Ele também me deu um papel relevante na sociedade, o de ser sal, luz, conforto e salvação para muitos. Por isso, se fiz a diferença na vida de alguém, para o mal ou para o bem, rogo a Ele que continue me fortalecendo para seguir adiante, no novo ano que se avizinha e nos anos vindouros. 



---X---



Nenhum comentário:

Postar um comentário