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terça-feira, 27 de novembro de 2012

Na oficina de Deus 6


                 Retomamos agora o assunto daquela conversa que tivemos, há mais de uma semana, inspirada na postura do doutor Diogo, personagem médico de uma novela, interpretado pelo já saudoso ator e diretor Marcos Paulo, diante de um paciente aidético no leito, ocasião na qual ele fez uma declaração bastante animadora. Estimamos quais seriam as possíveis reações de um paciente naquele estado, ao ouvir aquelas palavras, e uma delas seria acreditar que está completamente curado e que não mais precisa de tratamento.
 
                 Queremos, obviamente, que os pacientes em geral fiquem bem, é óbvio, mas, se os pacientes com doenças crônicas se sentirem bem ao ponto de acharem que não estão mais doentes e que não precisam, portanto, continuar tomando seus medicamentos de rotina, pode acontecer um desastre.

                 Na psiquiatria, também enfrentam-se problemas de adesão e de abandono do tratamento. Muitos pacientes, especialmente os mais recentes, em geral não reconhecem que estão doentes e que precisam de ajuda, não sabem porque são conduzidos a um serviço de emergência psiquiátrica ou a um consultório psiquiátrico e não sabem porque estão tomando os psicofármacos que lhes são prescritos. Mesmo entre os veteranos, há casos em que, logo que desaparecem os sintomas, os pacientes ou seus familiares, por conta própria, suspendem a tomada das medicações e o acompanhamento ambulatorial, esperando que ocorram novas crises psicóticas, no caso de paciente psicóticos, por exemplo, para procurar um pronto-socorro psiquiátrico ou para retomar as consultas periódicas com seus psiquiatras. Por vezes, pode acontecer também o oposto: quando começam a ser reduzidas as doses das medicações, vislumbrando a possibilidade de retirada delas, os familiares ou até os próprios pacientes se opõem, mesmo que os pacientes estejam apresentando-se psiquicamente estáveis, há muito tempo, com aquela dose, ou que aquela medicação não esteja fazendo-lhe efeito terapêutico algum.

                O manejo de pacientes psiquiátricos torna-se mais difícil que o de pacientes de outras áreas da medicina porque nem sempre se consegue levar o paciente a atingir o seu steady state esperado, do ponto de vista clínico-psiquiátrico, para seu transtorno e para seus padrões de comportamento e de personalidade, ao longo da vida. É muito difícil satisfazer plenamente esses pacientes e seus familiares, propiciando-lhes o mais absoluto bem-estar, porque é muito difícil eliminar por completo todos os sinais e sintomas dos transtornos psiquiátricos. Por mais que lhe sejam prescritos "coquetéis" de psicofármacos e acrescidas formas de terapias paralelas, como a psicoterapia e a terapia ocupacional, por exemplo, eles quase sempre apresentam algum sintoma residual de seus transtornos, em intensidade suficiente para incomodá-los.

                Já os pacientes infectados pelo vírus HIV geralmente respondem muito bem às terapias antirretrovirais, quando eles seguem seus tratamentos à risca, dependendo das características genotípicas específicas dos exemplares virais presentes naquele organismo. Quando se consegue, na maioria das vezes, atingir as metas principais do tratamento, que são manter a carga viral indetectável e a contagem de linfócitos CD4 acima de mil unidades, em geral, o paciente está afastado das infecções oportunistas, hígido e assintomático, e vivendo com alguma qualidade de vida, apesar dos sacrifícios de tomar os "coquetéis", todos os dias, pelo resto da vida, de fazer exames de sangue periódicos e de ter de trincar os dentes para aguentar os efeitos colaterais dos medicamentos.

                Por vezes, tento explicar aos pacientes psiquiátricos e aos seus parentes, de maneira sucinta e numa linguagem acessível, o funcionamento dos psicofármacos, especialmente dos antipsicóticos, comparando-os com os mecanismos de frenagem dos aviões. Bem, quando os aviões estão no ar, suas turbinam giram em um determinado sentido, sugando ar de frente para trás, enquanto o movimento do aparelho gera uma corrente de ar pesado sob as asas e outra corrente leve sobre as asas. Essas correntes estabilizam o aparelho no ar. Quando o avião toca o chão, além de os flaps, que são palhetas posteriores das asas, serem erguidas, barrando a passagem da corrente leve de ar, as turbinas passam a girar em sentido contrário, puxando o ar em sentido contrário. Esses mecanismos criam resistência aérea e reduzem a velocidade do veículo.

                 É mais ou menos isso que os antipsicóticos fazem: desaceleram a mente de um paciente esquizofrênico, por exemplo, que, por vezes, pode estar funcionando como um liquidificador ou um ventilador no grau de velocidade três. Simples assim. Como já disse antes, nossos remédios não fazem mágicas. Eles fazem simplesmente isto: desaceleram o funcionamento da mente do paciente, lentificando-o, acalmando-o e, por vezes, fazendo-o dormir. O efeito terapêutico direto, como se pode ver, é muito superficial e pouco específico. Os psicofármacos ainda não têm o poder de agir diretamente em sintomas como as alucinações auditivas, por exemplo. Os alívios da maioria dos sintomas-alvo do tratamento são obtidos como consequências indiretas da terapêutica.

                 Nossa ciência ainda é muito rudimentar, quase tão rudimentar quanto a tecnologia que mandou uma nave tripulada ao espaço, para explorar a Lua, e que tem lançado satélites, sondas e até músicas ao espaço, para flutuarem através do Universo, por tempo indeterminado. Por isso, não podemos deixar de ser humildes e de aceitarmos que não estamos sozinhos no Universo, porque existe uma força superior acima da nossa ciência. O melhor resultado que se tem obtido, na maioria dos casos, é o alívio de alguns sintomas, mas a recuperação cognitiva total de pacientes psiquiátricos, bem como a eliminação de agentes etiológicos dos transtornos psiquiátricos, se existirem, ainda têm sido o Santo Graal tão procurado pela psiquiatria. Por vezes, faltam suportes social e familiar adequados para os pacientes psiquiátricos, o que torna esse Santo Graal cada vez mais escondido. Por vezes, há pacientes que sempre estão entrando em crises psicóticas, ou não chegam a sair delas completamente, e que vivem sendo internados e recebendo altas hospitalares, em hospitais psiquiátricos diversos, quando não encontram ambientes domésticos adequados às suas recuperações.

                 Para encerrar a postagem, apenas um comentário final sobre aquela emblemática cena da novela que mencionei: aquelas palavras do colega, quando ele se declara capaz de fazer o paciente sentir-se melhor do que pode esperar ou de que pode fazer mais coisas por ele que possa imaginar, podem reforçar aquela imagem egocêntrica e autossuficiente que muitos médicos, voluntária ou involuntariamente, passam ao público, além da ideia de serem quase deuses ou feiticeiros. Conversamos mais sobre isso.



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