Uma situação do cotidiano que pude observar, nesse feriado mais recente, me fez pensar sobre a importância de, esporadicamente, abrirmos concessões, praticarmos a benevolência e sermos generosos com nossos semelhantes. Com ela, aprendi que, às vezes, precisamos sair da nossa cômoda condição de autômatos, meros cumpridores inquestionáveis de comandos programados e incapazes de sentir com o coração, e nos lembrarmos de que também somos seres humanos.
Estava abastecendo o carro, em um posto de gasolina, diante do qual havia uma blitz. Um dos condutores parados na fiscalização foi convidado a descer do veículo. Então, ele conversou longamente por alguns minutos com um patrulheiro. Ninguém se exaltou, ninguém parecia nervoso. Então, fui me aproximando e peguei um pedaço da conversa. O patrulheiro queria apreender o veículo e aplicar uma multa porque, segundo ele, havia alguma irregularidade na documentação e o carro estava transportando uma criança sem o assento especial para a idade. No final das contas, o guarda deixou que o rapaz partisse com a esposa e o filho, mas com a condição de que retornasse imediatamente para casa e que não saísse da cidade com aquele veículo, enquanto não o regularizasse. E assim, ele o fez.
Interessante é que não houve carteirada, tampouco pagamento de propina. Aquele motorista tinha tudo para ter se prejudicado naquela situação. Foi um desfecho surpreendente. Ainda não acredito que ele conseguiu sobressair. O policial pediu a opinião de um colega. Ficaram ambos pensativos por alguns instantes. Eles devem ter se sensibilizado diante da situação daquela família e resolveram fazer vista grossa para aquele caso. Eles estavam no direito e no dever de aplicar o que preconizam as leis pertinentes para situações como aquelas, mas eles se valeram do bom senso e optaram por não aplicá-las. Quiçá tenham-lhe passado pelas mentes indagações como estas:
1. Esse carro e esse motorista oferecem risco à segurança do trânsito?
2. O que eu ganharia fazendo o que tem de ser feito agora? Para mim, não faria diferença alguma. Eu estaria apenas cumprindo meu dever, mas, para eles, faria uma grande diferença.
3. Posso liberá-lo, dando-lhe uma chance e confiando que não vou me arrepender por isso?
Esse exemplo pode ser transcrito em nosso cotidiano, para aprendermos que as regras são importantes apenas como parâmetros, para um bom ordenamento da vida social, mas, mantermo-nos apegados a elas é insuficiente, inviável e desinteressante. Não vivemos dentro de ambientes hermeticamente fechados. Não vivemos dentro de formas de preparo de bolos ou de outros alimentos. Precisamos ser flexíveis, de vez em quando, independentemente de nossas convicções políticas ou religiosas. Precisamos, por vezes, deixar nossos protocolos de lado.
Falando em religião, o Evangelho nos diz, nas entrelinhas, especialmente nas passagens que se referem aos embates de Jesus Cristo contra os fariseus, como no capítulo 23 do livro de Mateus, por exemplo, que não devemos nos deter apenas em observar leis. Devemos também conservar o maior amor possível nos corações e saber dosar com equilíbrio a razão e a emoção, para que, deste modo, possamos tomar as decisões mais justas e mais sensatas, para o nosso bem e o de nossos semelhantes.
Lembrei-me de que preciso conversar, em outra oportunidade, sobre a lei, a moral e a ética. São três conceitos importantes que, ora se complementam, ora se digladiam.
Me deparo frequentemente com situações em meu trabalho que me exigem fazer concessões, como, por exemplo, quando alguns pacientes agem de maneira inconveniente, chegando atrasados às consultas ou quando me procuram em dias para os quais eles não têm consultas agendadas.
Precisamos fazer concessões, de vez em quando, dentro dos limites do bom senso, para tentar evitar abusos, é claro. Não sei se considero um defeito ou uma virtude, mas é que tenho uma grande dificuldade para dizer um 'não'. Por isso, sou muito requisitado, nos lugares por onde passo. Ainda não pude avaliar com clareza as consequências disso, à médio ou longo prazo.
Encerro esta postagem deixando aqui registrado que tomei conhecimento da decolagem do doutor Airton Monte, veterano e conceituado médico psiquiatra de Fortaleza, além de escritor e colunista, rumo à eternidade, na noite da última segunda-feira, dia 10. Tive a honra de conhecê-lo pessoalmente, há alguns meses, no hospital Mira y López, onde ele ainda trabalhava e, aparentemente, não se deixava abater pela doença que o ceifaria. Confesso que ainda não tive contato com sua obra literária. Procurarei conhecê-la, logo que tiver tempo. A melhor maneira que vejo de honrá-lo e de homenageá-lo é tentando dar continuidade ao seu ofício, a prática do bem, em defesa dos fragilizados e estigmatizados pacientes psiquiátricos. Faço votos para que Deus cuide dele e ajude seus familiares a superar o vazio que ficou.
Deixo aqui registrada a lembrança da passagem do aniversário do meu amigo Felipe, justamente em 11 de setembro, data tão emblemática. Quem também aniversaria nessa data é o doutor Mourão, que também é psiquiatra e escritor. Em homenagem aos aniversariantes, deixo um clipe da música predileta do Felipe, música com a qual ele desceu a rampa, na nossa festa de formatura. Dança aí, loirinho.
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