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domingo, 20 de outubro de 2013

O doutor


                      "Honra o médico por causa da necessidade, pois foi o Altíssimo quem o criou. (Toda a medicina provém de Deus), e ele recebe presentes do rei: a ciência do médico o eleva em honra; ele é admirado na presença dos grandes”.
Eclesiástico 38,1-3


                          Agradeço àqueles que me cumprimentaram pela recente passagem do Dia do Médico, embora tenha cá minhas dúvidas se realmente mereço tais cumprimentos, além de elogios, e se realmente há algo que valha a pena ser comemorado, porque me reconheço como um ser falho e frágil, porque o governo está tomando medidas contra nossa categoria, porque somos vistos como caranguejos por uma parte da imprensa, porque até integrantes do MST (Movimento dos "Sem-Terra"), se acham no direito de invadir a sede do nosso conselho regional de medicina, em Fortaleza, aparentemente acreditando que o conselho é culpado pelo fato de muitos médicos não trabalharem no interior e não atenderem nos assentamentos rurais.

                          Como se não bastasse, estou coberto de vergonha, depois que uma colega aparentemente perdeu a cabeça no trânsito e atropelou dois ocupantes de uma motocicleta, provocando as mortes de ambos, em Salvador. E o que esse episódio tem a ver comigo??? Me envergonho porque a sociedade nunca espera dos médicos atitudes como aquela. Não posso julgar, porque não conheço as circunstâncias do fato, tampouco os envolvidos, mas sabemos que qualquer um está sujeito a passar por uma situação como aquela, em qualquer um dos lados envolvidos. Mesmo assim, temos o dever de tentar evitar que tragédias assim aconteçam, dentro de nossas possibilidades, buscando o equilíbrio, em nossas atitudes, procurando manter o coração sempre aberto.

                          Pensando melhor, temos o que festejar sim, no Dia do Médico, porque, apesar de muitos nos verem como seres indolentes, insolentes, negligentes e gananciosos, ainda fazemos a diferença, para muitas vidas. Ainda tenho um longo e estreito caminho pela frente, até chegar à 1% da perfeição, mas, particularmente, comemorei fazendo o que sei fazer melhor: atendendo. 

                          Ainda não me sinto plenamente capaz de oferecer tudo aquilo que a sociedade espera de mim, mas, como já devo ter dito, não me arrependo de ter seguido este caminho, pois não creio que outro caminho tivesse me conduzido aonde cheguei, tampouco me propiciado igualmente tudo que tenho. Sempre muito grato à Deus por estas conquistas. Além disso, não me arrependo de ter semeado o bem e feito a diferença para muita gente, nos lugares por onde passei, embora, por vezes, perguntasse a mim mesmo algo como "o quê que eu fazendo aqui".

                          Entretanto, para um médico aspirante à psiquiatra, ainda tenho uma visão muito biológica da realidade. Este é um de meus calcanhares de Aquiles, sobre o qual discorrerei mais aprofundadamente, em outro momento. Por enquanto, preciso contar um fato recente, que me fez ver o quanto sou neuropsicobiologista. Há alguns dias, atendi uma paciente muito deprimida, com ideação suicida e comportamento autodestrutivo, apesar de estar tomando dois antidepressivos simultânea e diariamente, sendo um deles um dos mais fortes e em doses cavalares. Você deve estar percebendo a gravidade da situação. Então pedi ajuda a um amigo da residência. Meu objetivo era obter a opinião de alguém para indicar uma possível internação ou não, haja vista a paciente ter pobres suportes social e familiar, além de parcos planos para um futuro imediato, o que me deixou com medo de deixa-la ir embora para sua casa e, possivelmente, tentar suicídio. Então, meu amigo sentou-se e pediu para que a paciente falasse à vontade, sobre tudo que estava sentindo. Notei uma discreta melhora em seu semblante, como se tivesse descarregado um fardo. Trocamos uma das medicações e me senti seguro em libera-la. Depois, à parte, o amigo me disse que percebera meu desespero, que já conhecia a paciente e que tudo que ela precisava era ser ouvida, apenas isso. Quanto a isto, não tenho dúvidas. Sou ciente de que muitos transtornos psiquiátricos não podem ser tratados apenas com medicamentos, porque eles sozinhos não resolvem os problemas. Precisam-se de terapias complementares e paralelas, como a psicoterapia, por exemplo. Admito que, naquela ocasião, estava mais preocupado com o aspecto psicofarmacológico. 

                           Então, como já devo ter dito, por vezes quero que o tempo passe logo, mas ao mesmo tempo tenho medo de terminar logo a residência, assim como tive medo paradoxal de terminar a faculdade, há três anos, e de andar de bicicleta sem rodinhas, há vinte e cinco anos, porque tive e ainda tenho algum medo de não conseguir caminhar sozinho, com as próprias pernas, assim como resolveu fazer Bell Marques, ex-vocalista do Chiclete com Banana, "um novo jeito de caminhar", segundo ele, e medo de não ter a quem pedir socorro e de não conseguir pedir socorro, além do medo de errar feio.

                           De qualquer maneira, é melhor errar feio do que não fazer algo, com medo de errar, desde que não se tenha habilidade alguma e não se saiba o que está fazendo. Como diria Platão, "a necessidade que é a mãe da invenção". Por vezes, nos vemos obrigados a lançar mão do improviso, quando não sabemos o que fazer ou quando sabemos o que fazer, mas nos faltam recursos para fazê-lo. E, como diria Shakespeare, "você aprende que não importa aonde já chegou, mas para onde está indo, mas se você não sabe para onde está indo, qualquer lugar serve", e acrescento: desde que seja um bom lugar e escolhido com bom senso. O mais importante é não ficar parado e sem atitude, quando for requisitada sua ajuda.



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