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quarta-feira, 4 de julho de 2012

Responsabilidade pessoal 3




Uma das coisas que mais me tem chamado a atenção em serviço é que, por vezes, pessoas que precisam de algum atendimento médico buscam-no em locais inadequados. Não as culpo. A culpa é do grau de desinformação a que população está sujeita, agravado pela falta de alternativas.


Esse é um problema que afeta também aquelas pessoas que têm planos de saúde, convênios ou condições de bancar por assistência particular. Muitas delas, em situações de relativa urgência, como um corte profundo no pé, uma dor incoercível com analgésicos orais ou um quadro clínico sugestivo de dengue, por exemplo, ao invés de procurarem um pronto socorro hospitalar, preferem, quiçá por comodidade, marcar uma consulta eletiva em uma clínica onde há apenas consultórios, locais que não são preparados para esse tipo de atendimento. Por vezes, fazem-no porque as salas de emergências dos hospitais particulares também estão lotadas. Estão lotadas porque cada vez mais brasileiros estão descrentes em relação ao SUS e, cansados de esperar melhoras no atendimento aos seus anseios, movidos pelo aumento do poder aquisitivo ou pela necessidade, se vêem obrigados a fazer um esforço para pagar um plano de saúde, nem que seja nas modalidades mais rasteiras, daquelas com meses de carência e que só dão direito à internação em enfermaria coletiva, quando dão. Por vezes, empresas contratam planos para seus empregados e dependentes, mediante módicos descontos no contra-cheque.  

Se você mora no interior, especialmente em alguma localidade afastada da sede do seu município, e começa a apresentar um quadro parecido com IAM (Infarto Agudo do Miocárdio) ou com AVC (Acidente Vascular Cerebral), vulgo derrame, é natural e compreensível que procure o serviço de saúde mais próximo, no caso um posto de saúde, até por falta de opção, não é verdade??? Mas, e se você mora na capital, apresenta algum dos quadros que mencionei acima ou chega até a sofrer um acidente de trânsito com direito à TCE (Traumatismo Cranio Encefálico), o que você acharia se, nessas circunstâncias, alguém o levasse a um posto de saúde, onde terá sorte, se encontrar um médico, e, certamente, não haverá material, nem espaço adequado e nem equipe preparada para atender essas ocorrências??? Você se arriscaria a se dirigir a um CSF, movido pelo desespero ou pela falta de informação, ao invés de ir direto a um hospital??? Acredite, situações como essa ainda acontecem em Fortaleza. Do jeito que o governo e o diabo gostam, concedendo incentivos tímidos à atenção primária em saúde só para ter uma desculpa para transformar as equipes de saúde da família em sacos de pancadas.

Muitos pacientes que consomem medicações de uso contínuo, especialmente psicotrópicas, ou por falta de opção ou por comodidade, digamos que empurram seus tratamentos com a barriga, não fazem acompanhamento regular e periódico de seus tratamentos em consultas eletivas no consultório de especialista algum, limitando-se a procurar os serviços de emergências apenas para renovar as receitas, abarrotando os corredores desses serviços e comprometendo o atendimento emergencial àquelas pessoas que realmente necessitam.


Outro exemplo de mau uso do serviço público de emergência médica justifica a necessidade de se produzir um quadro como o da imagem acima, que explica a diferença entre os serviços prestados pelo SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) e pelo Corpo de Bombeiros, bem como exemplificando em que circunstâncias eles devem ser acionados.  

A situação do atendimento em urgências e emergências psiquiátricas na minha região não difere muito do que se vê em outras áreas emergenciais. Talvez seja até pior. Em Fortaleza, temos apenas um hospital que dispõe, efetivamente, de um pronto-socorro psiquiátrico 24h por dia. Na maior parte do tempo, não há uma grande fila de espera por atendimento de um médico. Por outro lado, a fila formada por aqueles que já foram avaliados pelo médico e que receberam indicação de internação hospitalar é ampla. Eles e seus familiares chegam a passar dias acampados à espera do surgimento de leitos disponíveis. 

Essa situação deve ser aliviada um pouco, nos meses vindouros, devido à uma determinação judicial recente que estipula o tempo máximo de espera por uma internação psiquiátrica em 6h, em Fortaleza, fazendo com que os governos municipal e estadual se mexam e tomem algumas medidas paliativas, à curto ou médio prazo, como a abertura de clínicas de tratamento para dependência química e de novos pronto-socorros psiquiátricos em hospitais gerais. 

Devemos esta vitória à luta incansável de pessoas como o dr. Adelmo Aragão, por exemplo, que é médico plantonista do Hospital de Saúde Mental de Messejana e sempre acompanha de perto o sofrimento daquela gente que passa por lá. Ele foi o primeiro indivíduo que teve a coragem de bater de frente contra o sistema em defesa daqueles pacientes e de seus familiares que não têm quem puna por eles. Ele teve a iniciativa de entrar com uma ação contra o poder público, em suas três esferas, por meio da Defensoria Pública da União, vindo a contar, posteriormente, com o apoio de outros indivíduos da área de saúde e de entidades médicas, como o NUPEC (Núcleo de Psiquiatria do Ceará) e a SOCEP (Sociedade Cearense de Psiquiatria), por exemplo.   

Não culpo de todo o município de Fortaleza, por ter descredenciado sumariamente mais de cem leitos psiquiátricos destinados ao SUS, em hospitais privados. Foi uma atitude inconsequente do município, baseada na utopia de que apenas os CAPS e os leitos remanescentes seriam suficientes para atender a demanda de pacientes psiquiátricos da Grande Fortaleza e, por vezes, do interior. Pergunte aos pacientes e aos seus familiares se, na prática, isso funciona. Não culpo de todo o município porque o fechamento daqueles hospitais prejudicados por essa medida era apenas uma questão de tempo. O município apenas deu uns tiros de misericórdia. Entretanto, não sei se foi pensado, na época, mas, por que os leitos do SUS naqueles hospitais privados que fecharam as portas não foram remanejados e distribuídos entre os hospitais psiquiátricos remanescentes???

Outra pergunta que eu tenho a fazer e que está entalada na minha garganta e nas pontas de meus dedos, desde que entrei na residência, há cerca de um ano e meio é, se existe uma lei estadual de 1993, a Lei Mário Mamede, que proíbe a criação de novos hospitais psiquiátricos, públicos ou privados, bem como aumento do número de leitos nos existentes, em todo o Estado do Ceará, e que, claramente, previa a extinção de todos os hospitais psiquiátricos do Ceará, num prazo de cinco anos, o que, felizmente, não se concretizou, e se existe uma lei federal de 2001, mais branda, mais racional, mais sensata e superior àquela lei estadual, a Lei Paulo Delgado, então, por que somente agora, de pouco mais de um ano para cá, retomamos a discussão sobre a assistência psiquiátrica e resolvemos tomar alguma atitude???   

Há pouco mais de um ano, enviei uma mensagem à ABRAMEDE (Associação Brasileira de Medicina de Emergência), relatando de maneira mais sucinta a situação de emergências psiquiátricas em nossa região. Ainda aguardo a resposta deles:

Sou médico residente de psiquiatria e esporadicamente dou plantões pela carga horária da minha residência no pronto-socorro do Hospital de Saúde Mental de Messejana, em Fortaleza, que, de uns meses para cá, tornou-se o único serviço de emergência psiquiátrica da cidade, depois que outros hospitais psiquiátricos daqui tiveram muitos de seus leitos descredenciados pelo SUS, que já fazia pagamentos irrisórios por aqueles leitos, e isto contribuiu para inviabilizar a continuidade do funcionamento daquelas instituições. Assim, a emergência do HSMM tende a se tornar tão crítica quanto a emergência de qualquer hospital geral. Muitos pacientes e seus familiares passam horas, às vezes dias, literalmente acampados, no saguão do departamento, aguardando o surgimento de vagas cada vez mais minguadas para internação naquele hospital ou em outros 3 hospitais psiquiátricos de Fortaleza que ainda resistem. Representantes do SUS no município hipocritamente declaram que apenas os leitos psiquiátricos remanescentes e os CAPSs são suficientes para atender a demanda. Tenho observado que nem todos os casos que chegam ao nosso serviço requerem internação e muitos deles poderiam ter sido bem manejados nas emergências dos hospitais gerais. Acontece que, infelizmente, alguns plantonistas, na maioria das vezes, parecem não querer dar atenção aos pacientes psiquiátricos e tratam logo de encaminhá-los para nós, ainda que estejam manifestando comorbidades clínicas graves. Não sei se o fazem por preconceito ou por despreparo em lidar com esse tipo de paciente. Por outro lado, eu até compreendo as razões desses médicos. Por que eles iriam se ocupar com pacientes em crise psicótica, se podem encaminhá-los para um psiquiatra de plantão, em algum lugar da cidade, e ficarem livres para cuidar das dezenas de casos de politraumatismos, abdomes agudos, IAMs, AVCs e suspeitas de dengue que não páram de chegar??? Minhas sugestões, para melhorar o atendimento de urgência/emergência aos pacientes psiquiátricos nos serviços de saúde em geral são:
1.Capacitar melhor os médicos generalistas a lidar com esses casos;
2.Contratar médicos psiquiatras para dar plantões em hospitais gerais, bem como nas UPAs tão prometidas pelo Governo Federal;
3.Que os municípios que possuem recursos agilizem a construção dos CAPS tipo 3, preconizados pela Política Nacional de Saúde Mental e que estão teoricamente programados para funcionar 24h por dia.
E vocês da ABRAMEDE? O que dizem? Como orientam os médicos emergencistas a lidar com pacientes psiquiátricos? Obrigado!

Mesmo aqueles pacientes psiquiátricos que têm planos de saúde também sofrem para conseguir assistência adequada, porque, além de os hospitais psiquiátricos privados em Fortaleza serem minguados e necessitarem prestar serviços ao SUS para sobreviverem, os planos ainda impõem muitas restrições aos seus clientes, como não disponibilizar unidades de pronto-socorro psiquiátrico, no caso dos planos que têm seus próprios hospitais, e limitar o tempo de internação psiquiátrica em até um mês, por exemplo.

Eu partilho da opinião de que, para melhorar a assistência médica em geral, não apenas na psiquiatria, não adianta abrir mais hospitais com salas de emergências, enquanto os níveis de atenção primária e secundária estão desestruturados. Reforçando esses níveis de base, equipando-os adequadamente e contratando mão-de-obra bem qualificada e bem paga, podemos fomentar a promoção, a proteção e a prevenção em saúde, evitando que cada vez mais pessoas passem por situações que as conduzam inexoravelmente aos hospitais. Se as pessoas estão procurando muito os pronto-socorros, é porque não estão conseguindo atendimento adequado, de caráter preventivo ou curativo, nos postos de saúde ou nas clínicas especializadas. Ainda estamos investindo muito pouco na medicina preventiva. Acho que eu já escrevi isso aqui antes.

Encerro a postagem com uma das últimas cenas da consagrada série de TV "E.R.", que representa as iniciais para "Emergency Room" e que ficou conhecida no Brasil como "Plantão Médico". Depois eu quero escrever mais sobre ela e sobre outra consagrada série médica da televisão, que saiu do ar, recentemente: House MD.




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