Páginas

terça-feira, 3 de abril de 2012

Impacto social 2


“Se você contribui para a felicidade de outras pessoas, encontrará o verdadeiro bem, o verdadeiro sentido da vida”.
Dalai Lama


Quando eu comecei minha carreira, trabalhando em um posto de saúde no interior, há pouco mais de um ano, eu trabalhava de segunda à quinta-feira, no horário comercial, e recebia uma quantia satisfatória para manter as contas em dia, mas que era extraordinária para um médico recém-formado. Se eu quisesse, poderia me dar o luxo de viver tranquilamente apenas daquele emprego. Não sei se seria suficiente, se eu fosse casado e tivesse filhos.


Confesso que fiquei muito balançado, quando, subitamente fui convocado para assumir uma vaga remanescente de médico residente em Fortaleza. Foi uma decisão muito difícil, não apenas por causa do salário, mas também porque eu vivia com qualidade de vida no interior e estava mais perto do meu amor. Vislumbrando os tempos de vacas magras que viriam adiante, com muito suor e labuta para conseguir pagar as contas, inclusive as prestações de um carro recém-adquirido, um de meus instrumentos de trabalho mais caros, perdendo apenas para minha mente, pesei os prós e os contras e acabei optando mesmo por largar tudo, retornar à capital e assumir a residência médica.

Então eu me lembrei daquela velha piadinha do cachorro que entrou na igreja. Todo mundo sabe que ele só entrou porque a porta estava aberta. Tudo bem que talvez eu não tivesse feito o suficiente para merecer, mas, como a porta estava se abrindo para mim, eu precisava aproveitar, até porque, se eu tivesse adiado meu ingresso na residência, a tendência seria tornar-se cada vez mais difícil minha entrada, ano após ano. E eu já tenho essa impressão de que, a cada ano, tudo fica mais difícil para mim. Tomei a melhor decisão possível. Estou plantando agora para colher depois.

Por vezes, eu tinha uma sensação de culpa. Eu via que outras pessoas que trabalhavam na área de saúde daquele município, mesmo tendo nível superior, não recebiam a metade do que eu recebia, e trabalhavam mais que eu. Por vezes, eu tinha uma sensação de culpa associada a uma sensação de desperdício. Como eu falei no começo, eu me sentia bem remunerado e satisfeito com meu salário de médico do PSF, apesar de alguns inconvenientes desse trabalho, sobre os quais quero comentar em outra oportunidade. O fato é que me acomodei com aquela situação. Eu não sentia a necessidade de fazer horas extras dando plantões, mas, vez por outra, eu me lembrava de que havia hospitais na região precisando de alguém como eu.

Detesto admitir isto, mas acho que não me interessei em dar plantões porque não me sentia seguro e competente o suficiente para assumir tal responsabilidade de ficar na linha de frente de um hospital qualquer do interior, como um médico multifuncional, sendo, ao mesmo tempo, clínico, cirurgião, pediatra e obstetra. Mesmo no posto de saúde, eu sempre tive medo de que trouxessem alguém para morrer aos meus pés e eu nada pudesse fazer para impedir. Quem trabalha em um ambiente daqueles está exposto a ser um saco de pancadas, algo que sirva para alguém descarregar suas fraquezas. Se ele sabe que o caso é grave e que talvez não tenha mais solução, joga-o aos pés do doutor, mesmo sabendo que este também não vai poder fazer coisa alguma, mas pelo menos tira o peso das costas. Não obstante, me pergunto se não fui egoísta por ter deixado de investir parte de meu tempo livre em intensificar a prática do bem, aliviando os sofrimentos dos pacientes que procuraram aqueles hospitais e o fardo nas costas de meus companheiros de labuta.

Bem, de um jeito ou de outro, o fato é que consegui fazer meu metiê, lá no sertão. Como eu já disse, eu não me arrependo de ter trabalhado nos lugares por onde passei e semeei o bem. Quando comecei a trabalhar como médico, num recanto perdido no meio do sertão, confesso que senti medo. Havia uma multidão de pacientes a minha espera, como se fossem feras prestes a me devorar. Teria eu todas as respostas para as suas dúvidas? Eu me senti, então, como se retornando aos primórdios da medicina. Como, naquele distrito, eu estava assumindo teoricamente a posição de maior autoridade sanitária do lugar, então eu passava a ser uma espécie de pajé de uma tribo. Se você não sabe, nas civilizações antigas, quem exercia a função equivalente à do médico era o sacerdote. Então, eu que ultimamente tenho rezado pouco, mas sempre me lembrando de que Deus existe, naquele dia eu rezei, assim como aqueles antigos sacerdotes rezavam para suas divindades e evocavam espíritos para que viessem e trouxessem a cura para aqueles que os procuravam. Eram outros tempos. A medicina tornou-se mais técnica e menos mística. De qualquer maneira, deu certo. Criei alguma autoconfiança e, até agora, tenho conseguido satisfazer a maioria daqueles que me procuram.

Escrevi tudo isso até agora só para dizer que penso que o fruto mais importante do ofício médico é seu impacto social, seguido por uma remuneração excepcional, se comparada com as remunerações de muitos outros assalariados, mas isto requer muito estudo e atualização permanente.


*******


Nenhum comentário:

Postar um comentário