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segunda-feira, 30 de abril de 2012

O médico e o monstro 5


                               Por vezes, os pacientes, elogiam seus médicos, dizendo que eles são uns anjos. Agradeço por elogios assim, quando são dirigidos a mim, mas penso que, se sou um anjo, então sou um anjo do purgatório, se é que isto é possível, porque também tenho meus temores, angústias e incertezas a administrar.
                               Eu sofro como qualquer outro ser humano. Minha vida também é um purgatório. Tudo bem, reconheço que sou ingrato por não agradecer devidamente pela vida que levo hoje e que minha situação podia ser pior, mas também reconheço que podia ser melhor.

                                         "Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a  vida por suas ovelhas. O mercenário, que não é pastor e não é dono das  ovelhas, vê o lobo chegar, abandona as ovelhas e foge, e o lobo as  ataca e dispersa. Pois ele é apenas um mercenário e não se importa com as ovelhas. Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem".

João 10,11-15

                               Foi pensando nessa questão dos anjos, em soma com o trecho do Evangelho transcrito acima, que resolvi hoje propor a mim mesmo e a você também, se você for profissional da saúde, a seguinte reflexão: até que ponto estamos sendo devidamente responsáveis pelos pacientes que passam por nossas mãos??? Será que estamos mesmo cumprindo nosso dever de ajudá-los, dentro de nossas possibilidades???
                               Você vê que existe uma certa comparação possível entre o anjo da guarda e o bom pastor, pois ambos são seres que protegem ou salvam de situações de risco seus protegidos. É possível também comparar o trabalho do médico, e também de outros profissionais da área de saúde, com os trabalhos dos seres supracitados, guardadas as devidas proporções. Pelo menos é assim que a sociedade nos vê.
                               Idealmente, o médico deveria assumir a função de guarda-costas, sem ser aquele de Whitney Houston, de seus pacientes e dar a vida por eles, que seriam suas ovelhas, se necessário. Para alguns, essa visão paternalista do médico seria válida, especialmente para aquelas pessoas mais carentes e que, por vezes, esperam encontrar no médico aquilo que não encontram na família.
                               Mais importante que isso é que o médico também deveria conhecer bem suas ovelhas e se tornar bem conhecido por elas. Por vezes, não é o que acontece, quando a relação médico-paciente se torna muito superficial, quando as consultas são muito rápidas e a demanda de pacientes, muito alta, por exemplo.
                               Confesso que ainda não criei vínculos muito estáveis com todos os pacientes que passam por mim. Confesso que tenho medo. Medo de me transformar em um saco de pancadas deles. Medo de não ser forte o suficiente para aguentar a energia negativa que eles podem vir a me transferir, nem para aguentar as sensações de frustração e de impotência, por não conseguir resolver pelo menos a parte que me cabe, nos problemas deles. Estarei eu no lugar certo???

                               Você já deve ter ouvido falar no Barão de Münchausen, não é verdade? Trata-se de um personagem real, um militar reformado alemão do século XVIII, que ganhou notoriedade por contar histórias mirabolantes e de veracidade questionável sobre suas peripécias militares. Ele acabou inspirando a criação de um personagem literário homônimo. Por sinal, existe um transtorno psiquiátrico chamado síndrome de Münchausen, no qual o indivíduo alega estar com sinais ou sintomas de alguma doença, chegando mesmo a simulá-los ou induzí-los, apenas para chamar a atenção e receber cuidados médicos e nada mais, podendo até estar doente de fato, porém procurando exarcerbar as manifestações da doença. Reza a lenda que Münchausen teria prestado uns serviços a um rei e este teria-lhe aberto uma sala que funciona como cofre, que estava repleta de moedas e objetos de ouro, e dito ao barão que, em retribuição, ele poderia pegar ali o que conseguisse carregar. Certamente, o rei falou aquilo por educação, acreditando que o barão tivesse bom senso e que só conseguiria levar dali um ou dois malotes, no máximo. O barão usou de sua esperteza e, aproveitando-se da "brecha" nas palavras do rei, chamou uns assistentes, deu um jeitinho brasileiro e conseguiu praticamente limpar o cofre. Não era para ele levar o que pudesse carregar??? Pois ele conseguiu carregar tudo.
                               Se comentei sobre o Barão de Münchausen, não foi para dizer que tive algum paciente com a síndrome. Nunca tive. Você vai já compreender.
                               No começo da minha carreira, eu tinha minhas ideias e expectativas. Mandei fazer um carimbo que continha o número de um dos meus celulares. Eu fiz isso porque queria ganhar a confiança dos pacientes e me mostrar como uma pessoa solícita e acessível. Eu me arrependi, porque algumas pessoas passaram dos limites, me telefonando abusivamente, em dias e horários inconvenientes, e ainda por cima, fazendo chamadas à cobrar. É, eu sei que eles não fazem isso por mal. Eles agem assim, porque a população é carente demais por serviços de saúde. Isso os leva a pensar que todo médico trabalha no SAMU e é obrigado a estar à disposição 24h, em qualquer lugar do mundo. Depois eu quero conversar mais sobre isso.
                                Eles não entendem que o médico também é ser humano, que precisa de folga, de vez em quando, e que não pode nem deve levar o personagem para a cama. Aí vem a seguinte pergunta: será que o médico deve ser sempre a mesma pessoa, dentro e fora do ambiente de trabalho??? Depois eu quero escrever mais sobre isso.
                               Como você pode ver, eu dancei, nessa história do carimbo. Assim como o rei que abriu seu cofre para o barão, eu abri meu coração para os pacientes. 
                               De qualquer maneira, tenho me esforçado para não permitir que os pacientes que se consultam comigo, em qualquer local de atuação, saiam da minha presença com as mãos vazias. Tenho me esforçado para ajudá-los, dentro de minhas possibilidades. Quando isso não me é possível, procuro encaminhá-los para quem o possa fazer.
                               Mesmo assim, às vezes, eu me pergunto se não estou trabalhando como um mercenário, se não vejo cada paciente como se fosse apenas mais um e se não estou sendo movido apenas pela produtividade e pelo ganho material que ela pode propiciar. Me pergunto também se, por conta disso, não fui, em algum momento, parcial, no meu trato com pacientes de serviços públicos e de serviços privados. Sugiro que você também faça essas perguntas a si mesmo (a).
                               Há alguns meses, fiz uns atendimentos em um posto de saúde onde trabalha um amigo meu. Lá, nas vezes em que compareci, sempre me vi obrigado a atender uma quantidade absurdamente elevada de pacientes em um período absurdamente muito curto. Se, por um lado, ajudei aquelas pessoas, aliviando-lhes parcialmente seus sofrimentos, por outro lado, o que fiz com elas, e comigo mesmo, foi um ato de violência. Pretendo nunca mais fazer esse tipo de trabalho "sujo", por dinheiro algum.



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